Texto "Revolução
e mulheres", da autoria de Maria Velho da Costa e incluído
no livro "Cravo" (Lisboa: Moraes, 1976; 2ª ed. D. Quixote,
1994).
Em jeito de agradecimento público a
Maria Velho da Costa e ao Miguel Cardoso, à primeira pela autoria desta
magnífica obra e ao segundo pela sua preciosa divulgação,
reproduzimos aqui, na sua versão integral, as 7 partes que
constituem "Revolução e mulheres".
REVOLUÇÃO E
MULHERES
1.
RECONSTITUIÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO
Elas são
quatro milhões, o dia nasce, elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o
café. Elas picam cebolas e descascam batatas. Elas migam sêmeas e restos de
comida azeda. Elas chamam ainda escuro os homens e os animais e as crianças.
Elas enchem lancheiras e tarros e pastas de escola com latas e buchas e fruta
embrulhada num pano limpo. Elas lavam os lençóis e as camisas que hão-de
suar-se outra vez. Elas esfregam o chão de joelhos com escova de piaçaba e
sabão amarelo e correm com os insectos a que não venham adoecer os seus
enquanto dormem. Elas brigam nos mercados e praças por mais barato. Elas contam
centavos. Elas costuram e enfiam malhas em agulhas de pau com as lãs que hão-de
manter no corpo o calor da comida que elas fazem. Elas vêm com um cântaro de
água à cinta e um molho de gravetos na cabeça. Elas limpam as pias e as tinas e
as coelheiras e os currais. Elas acendem o lume. Elas migam hortaliça. Elas
desencardem o fundo dos tachos. Elas passajam meias e calças e camisas e outra
vez meias. Elas areiam o fogão com palha de aço. Elas calcorreiam a cidade a pé
e à chuva porque naquele bairro os macacos são caros. Elas correm esbaforidas
para não perder o comboio, o barco. Elas pousam o cesto e abrem a porta com a
mão vermelha. Elas põem a tranca no palheiro. Elas enterram o dedo mínimo na
galinha a ver se tem ovo. Elas acendem o lume. Elas mexem o arroz com um garfo
de zinco. Elas lambem a ponta do fio de linha para virar a camisa. Elas enchem
os pratos. Elas pousam o alguidar na borda da pia para aguentar. Elas arredam a
coberta da cama. Elas abrem-se para um homem cansado. Elas também dormem.
2.
REPRODUÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO
Elas vão à
parteira que lhes diz que já vai adiantado. Elas alargam o cós das saias. Elas
choram a vomitar na pia. Elas limpam a pia. Elas talham cueiros. Elas passam
fitilhos de seda no melhor babeiro. Elas andam descalças que os pés já não
cabem no calçado. Elas urram. Elas untam o mamilo gretado com um dedal de
manteiga. Elas cantam baixinho a meio da noite a niná -lo para que o homem não acorde.
Elas raspam as fezes das fraldas com uma colher romba. Elas lavam. Elas
carregam ao colo. Elas tiram o peito para fora debaixo de um sobreiro. Elas
apuram o ouvido no escuro para ver se a gaiata na cama ao lado com os irmãos
não dá por aquilo. Elas assoam. Elas lavam joelhos com água morna. Elas cortam
calções e bibes de riscado. Elas mordem os beiços e torcem as mãos, a jorna
perdida se o febrão não desce. Elas lavam os lençois com urina. Elas abrem a
risca do cabelo, elas entrançam. Elas compram a lousa e o lápis e a pasta de
cartão. Elas limpam rabos. Elas guardam uma madeixita entre dois trapos de
gaze. Elas talham um vestido de fioco para uma boneca de papelão escondida
debaixo da cama. Elas lavam as cuecas borradas do primeiro sémen, do primeiro salário,
da recruta. Elas pedem fiado popeline da melhor para a camisa que hão-de levar
para a França, para Lisboa. Elas vão à estação chorosas. Elas vêm trazer uin
borrego à primeira barraca e ao primeiro neto. Elas poupam no eléctrico para um
carrinho de corda.
3. PRODUÇÃO
Elas sobem
para cima de um caixote, que ainda são pequenas para chegar à bancada de
descarnar o peixe. Elas mondam, os dedos tolhidos de frieira e urtiga. Elas
fazem descer a lâmina de cortar o coiro. Elas sopram nos dedos a aquecê-los,
esfregam os olhos, voltam a pôr as mãos por detrás da lente a acertar os fios
da matriz do transistor. Elas espremem as tetas da vaca para o balde apertado
entre as pernas. Elas fecham num dia as pregas de papel de mil pacotes de
bolacha. Elas acertam em duzentos casacos a postura da manga onde cravar o
botão. Elas limpam o suor da testa com a manga e a foice rebrilha ao sol por
cima da cabeça e da seara. Elas ouvem a matraca de dez teares enquanto a peça
cresce diante, o fio amandado de braço a braço aberto. Elas cortam os dedos nas
primeiras vinte cinco latas até calejar bem. Elas fazem a agulha passar para cá
e lá em cruz na tela do tapete. Elas vigiam a última fieira de garrafas,
caladas, à espera da sirene. Elas carregam o cesto de azeitona à cabeça já sem
cantar, até que o sol se ponha.
4. SERVIÇOS
Elas
carregam no botão da caixa e fazem quinhentos trocos miúdos. Elas metem a
cavilha, dizem outro número e passam a vigésima chamada. Elas mexem panelões
que lhes chegam à cinta. Elas descem doze caixotes de lixo já noite fechada.
Elas fazem todas as camas e despejos de uma família alheia. Elas picam bilhetes
metidas numa caixa de vidro. Elas batem à máquina palavras que não entendem.
Elas arquivam por ordem alfabética duas mil fichas e vinte e cinco ofícios.
Elas vão outra vez buscar a gaveta das luvas para o balcão a ver se há aquele
verde. Elas aspiram do pó antes das nove doze assoalhadas, e cento e dez
degraus de alcatifa. Elas entram na praça manhã cedo, já vindas do lota
ajoujadas com o peixe para as bancadas. Elas acertam as bainhas de joelhos, a
boca cheia de alfinetes. Elas põem trinta e duas arrastadeiras e tiram sessenta
temperaturas. Elas pintam unhas de homem. Elas guardam sanitas e fazem renda em
pequenos cubículos sem janela.
5.
TRANSMISSÃO DE IDEOLOGIA
Coisas que
elas dizem:
— Se mexes
aí, corto-ta.
— Isso não
são coisas de menina.
— O meu
homem não quer.
— Estuda,
que se tiveres um empregozinho sempre é uma ajuda.
— A mulher
quer-se é em casa.
— Isto já
vai do destino de cada um.
— Deus não
quiz.
— Mas o
senhor padre disse-me que assim não.
— Dá um
beijinho à senhora que é tão boazinha para a gente.
— Você sabe
que eu não sou dessas.
— Estás a
dar cabo do teu futuro com uns e com outros.
— Deixa-te
disso, o que é preciso é sossego e paz de espírito.
— Comprei
uns jeans bestiais, pá.
— Sempre dá
para uma televisão daquelas novas.
— Cada um no
seu lugar.
— Julgas que
ele depois casa contigo?
— Sempre
há-de haver pobres e ricos.
— Se tu
gostasses de mim não andavas com aquela cabra a gastar o nosso. — Põe o comer
ao teu irmão que está a fazer os trabalhos.
— Sempre é
homem.
6. PRODUÇÃO
DE DESEJO
Elas olham
para o espelho muito tempo. Elas choram. Elas suspiram por um rapaz aloirado,
por duas travessas para o cabelo cravejadas de pedrinhas, um anel com pérola.
Elam limpam com algodão húmido as dobras da vagina da menina pensando,
coitadinha. Elas escondem os panos sujos de sangue carregadas de uma grande
tristeza sem razão. Elas sonham três noites a fio com um homem que só viram de
relance à porta do café. Elas trazem no saco das compras uma pequena caixa de
plástico que serve para pintar a borda dos olhos de azul. Elas inventam
histórias de comadres como quem aventura. Elas compram às escondidas cadernos
de romances em fotografias. Elas namoram muito. Elas namoram pouco. Elas não
dormem a pensar em pequenas cortinas com folhos. Elas arrancam os primeiros
cabelos brancos com uma pinça comprada na drogaria. Elas gritam a despropósito
e agarram-se aos filhos acabados de sovar. Elas andam na vida sem a mãe saber,
por mais três vestidos e um par de botas. Elas pagam a letra da moto ao que
lhes bate. Elas não falam dessas coisas. Elas chamam de noite nomes que não
vêm. Elas ficam absortas com a mola da roupa entre os dentes a olhar o gato
sentado no telhado entre as sardinheiras. Elas queriam outra coisa.
7. REVOLUÇÃO
Elas fizeram
greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta.
Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário igual e
creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Eles foram pedir para
ali uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram
as ruas de cravos. Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas
trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua. Elas foram para as portas de
armas com os filhos ao colo. Elas ouviram faltar de uma grande mudança que ia
entrar pelas casas. Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da
guerra. Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e
foram e não foram. Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias
das herdades abandonadas. Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro
urna cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como
podia ser sem os patrões. Elas levantaram o braço nas grandes assembleias. Elas
costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas
disseram à mãe, segure-me aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de
camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. Elas vieram dos arrebaldes com o fogão à
cabeça ocupar uma parte de casa fechada. Elas estenderam roupa a cantar, com as
armas que temos na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros
homens. Elas iam e não sabiam para aonde, mas que iam. Elas acendem o lume.
Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as
bestas, os homens e as crianças adormecidas.
Dezembro
1975
Maria Velho
da Costa, Cravo, Lisboa, Moraes Editores, 1976.
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