Herberto
Helder
OU
O POEMA CONTÍNUO
A COLHER NA BOCA
PREFÁCIO
Falemos
de casas, do sagaz exercício de um poder
tão
firme e silencioso como só houve
no
tempo mais antigo.
Estes
são os arquitectos, aqueles que vão morrer,
sorrindo
com ironia e doçura no fundo
de um
alto segredo que os restitui à lama.
De
doces mãos irreprimíveis.
—
Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,
as
casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a boca
subtil rodeada em cima pela treva das palavras.
Digamos
que descobrimos amoras, a corrente oculta
do
gosto, o entusiasmo do mundo.
Descobrimos
corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio
admirável
das fontes —
pensamentos
nas pedras de alguma coisa celeste
como
fogo exemplar.
Digamos
que dormimos nas casas, e vemos as musas
um
pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores
tenebrosas,
e temos memória
e
absorvente melancolia
e
atenção às portas sobre a extinção dos dias altos.
Estas
são as casas. E se vamos morrer nós mesmos,
espantamo-nos
um pouco, e muito, com tais arquitectos
que
não viram as torrentes infindáveis
das
rosas, ou as águas permanentes,
ou um
sinal de eternidade espalhado nos corações
rápidos.
— Que
fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam
pelos
muitos sentidos dos meses,
dizendo:
aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra,
para
que se faça uma ordem, uma duração,
uma
beleza contra a força divina?
Alguém
trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha.
Alguém
viera do mar.
Alguém
chegara do estrangeiro, coberto de pó.
Alguém
lera livros, poemas, profecias, mandamentos,
inspirações.
—
Estas casas serão destruídas.
Como
um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente
no seu
casamento solar, assim
se
esgotará cada casa, esbulhada de um fogo,
vergando
a demorada cabeça para os rios misteriosos
da
terra
onde
os próprios arquitectos se desfazem com suas mãos
múltiplas,
as caras ardendo nas velozes
iluminações.
Falemos
de casas. É verão, Outono,
nome profuso
entre as paisagens inclinadas.
Traziam
o sal, os construtores
da
alma, comportavam em si
restituidores
deslumbramentos em presença da suspensão
de
animais e estrelas,
imaginavam
bem a pureza com homens e mulheres
ao
lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente,
tocando
uns nos outros —
comovidos,
difíceis, dadivosos,
ardendo
devagar.
Só um
instante em cada primavera se encontravam
com o
junquilho original,
arrefeciam
o resto do ano, eram breves os mestres
da
inspiração.
— E as
casas levantavam-se
sobre
as águas ao comprido do céu.
Mas
casas, arquitectos, encantadas trocas de carne
doce e
obsessiva — tudo isso
está
longe da canção que era preciso escrever.
— E de
tudo os espelhos são a invenção mais impura.
Falemos
de casas, da morte. Casas são rosas
para
cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança
nos
abandona para sempre.
Casas
são rios diuturnos, nocturnos rios
celestes
que fulguram lentamente
até
uma baía fria — que talvez não exista,
como
uma secreta eternidade.
Falemos
de casas como quem fala da sua alma,
entre
um incêndio,
junto
ao modelo das searas,
na
aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e
morrer com um pouco, um pouco
de
beleza.
TRÍPTICO
I
Transforma-se o amador na coisa amada com seu
feroz
sorriso, os dentes,
as
mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e
silêncio. Traz o barulho das ondas frias
e das
ardentes pedras que tem dentro de si.
E
cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio
da sua última vida.
O
amador transforma-se de instante para instante,
e
sente-se o espírito imortal do amor
criando
a carne em extremas atmosferas, acima
de
todas as coisas mortas.
Transforma-se
o amador. Corre pelas formas dentro.
E a
coisa amada é uma baía estanque.
É o
espaço de um castiçal,
a
coluna vertebral e o espírito
das
mulheres sentadas.
Transforma-se
em noite extintora.
Porque
o amador é tudo, e a coisa amada
é uma
cortina
onde o
vento do amador bate no alto da janela
aberta.
O amador entra
por
todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O
amador é um martelo que esmaga.
Que
transforma a coisa amada.
Ele
entra pelos ouvidos, e depois a mulher
que
escuta
fica
com aquele grito para sempre na cabeça
a
arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
e
vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
do
amador.
Depois
acorda, e vai, e dá-se ao amador,
dá-lhe
o grito dele.
E o
amador e a coisa amada são um único grito
anterior
de amor.
E
gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
de
amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o
seu espírito de amada.
Então
o mundo transforma-se neste ruído áspero
do
amor. Enquanto em cima
o
silêncio do amador e da amada alimentam
o
imprevisto silêncio do mundo
e do
amor.
II
Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a
atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida
e vasta.
Não sei
o que dizer, quando longamente teus pulsos
se
enchem de um brilho precioso
e
estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado
o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo
pressentir de um tempo distante,
e na
terra crescida os homens entoam a vindima
— eu
não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro
de mim, te procuram.
Quando
as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao
lado do espaço
e o
coração é uma semente inventada
em seu
escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu
arrebatas os caminhos da minha solidão
como
se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E
então não sei o que dizer
junto
à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando
as crianças acordam nas luas espantadas
que às
vezes se despenham no meio do tempo
— não
sei como dizer-te que a pureza,
dentro
de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo
os
trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr
do espaço —
e
penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas
quando a sombra cai da curva sôfrega
dos
meus lábios, sinto que me faltam
um
girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa
extraordinária.
Porque
não sei como dizer-te sem milagres
que
dentro de mim é o sol, o fruto,
a
criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o
amor,
que te
procuram.
III
Todas as coisas são mesa para os pensamentos
onde
faço minha vida de paz
num
peso íntimo de alegria como um existir de mão
fechada
puramente sobre o ombro.
—
Junto a coisas magnânimas de água
e
espíritos,
a
casas e achas de manso consumindo-se,
ervas
e barcos altos — meus pensamentos criam-se
com um
outrora lento, um sabor
de
terra velha e pão diurno.
E em
cada minuto a criatura
feliz
do amor, a nua criatura
da
minha história de desejo,
inteiramente
se abre em mim como um tempo,
uma
pedra simples,
ou um
nascer de bichos num lugar de maio.
Ela
explica tudo, e o vir para mim —
como
se levantam paredes brancas
ou se
dão festas nos dedos espantados das crianças
— é a
vida ser redonda
com
seus ritmos sobressaltados e antigos.
Tudo é trigo que se coma e ela
é o
trigo das coisas,
o
último sentido do que acontece pelos dias dentro.
Espero
cada momento seu
como
se espera o rebentar das amoras
e a
suave loucura das uvas sobre o mundo.
— E o
resto é uma altura oculta,
um
leite e uma vontade de cantar.
O AMOR EM VISITA
Dai-me
uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu
arbusto de sangue. Com ela
encantarei
a noite.
Dai-me
uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus
ombros beijarei, a pedra pequena
do
sorriso de um momento.
Mulher
quase incriada, mas com a gravidade
de
dois seios, com o peso lúbrico e triste
da
boca. Seus ombros beijarei.
Cantar?
Longamente cantar.
Uma
mulher com quem beber e morrer.
Quando
fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o
atravessar trespassada por um grito marítimo
e o
pão for invadido pelas ondas —
seu
corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele —
imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de
alegria e de impudor.
Seu
corpo arderá para mim
sobre
um lençol mordido por flores com água.
Em
cada mulher existe uma morte silenciosa.
E
enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os
bordões da melodia,
a
morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se
em embriaguez dentro do coração faminto.
— Oh
cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as
mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher
de pés no branco, transportadora
da
morte e da alegria.
Dai-me
uma mulher tão nova como a resina
e o
cheiro da terra.
Com
uma flecha em meu flanco, cantarei.
E
enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei
seu sorriso ardendo,
suas
mamas de pura substância,
a
curva quente dos cabelos.
Beberei
sua boca, para depois cantar a morte
e a
alegria da morte.
Dai-me
um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço
de planta,
onde
uma chama comece a florir o espírito.
À tona
da sua face se moverão as águas,
dentro
da sua face estará a pedra da noite.
—
Então cantarei a exaltante alegria da morte.
Nem
sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada
de sua órbita viva.
—
Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço
o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem
pungente
com
seu deus esmagado e ascendido.
—
Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.
Entontece
meu hálito com a sombra,
tua
boca penetra a minha voz como a espada
se
perde no arco.
E
quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola,
a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se
desfibra — invento para ti a música, a loucura
e o
mar.
Toco o
peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a
inspiração.
E eu
sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou
para ti com a beleza oculta,
o
corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo:
eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se,
tuas mãos descobrem
a
sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera
e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo
que se espera para as coisas, para o tempo —
eu sou
a beleza.
Inteira,
tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus
olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada
beleza.
Então
sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me
vem o fogo.
Não há
gesto ou verdade onde não dormissem
tua
noite e loucura,
não há
vindima ou água
em que
não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo:
olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu
dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a
carne transcendente. E em ti
principiam
o mar e o mundo.
Minha
memória perde em sua espuma
o
sinal e a vinha.
Plantas,
bichos, águas cresceram como religião
sobre
a vida — e eu nisso demorei
meu
frágil instante. Porém
teu
silêncio de fogo e leite repõe a força
maternal,
e tudo circula entre teu sopro
e teu
amor. As coisas nascem de ti
como
as luas nascem dos campos fecundos,
os
instantes começam da tua oferenda
como
as guitarras tiram seu início da música nocturna.
Mais
inocente que as árvores, mais vasta
que a
pedra e a morte,
a
carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge
a aurora pobre,
insiste
de violência a imobilidade aquática.
E os
astros quebram-se em luz sobre
as
casas, a cidade arrebata-se,
os
bichos erguem seus olhos dementes,
arde a
madeira — para que tudo cante
pelo
teu poder fechado.
Com
minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei
quanto és o íntimo pudor
e a
água inicial de outros sentidos.
Começa
o tempo onde a mulher começa,
é sua
carne que do minuto obscuro e morto
se
devolve à luz.
Na
morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com
uma imagem.
Espero
o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal
e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma
ideia de pedra e de brancura.
És tu
que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te
alimentas de desejos puros.
E
une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a
sombra canta baixo.
Começa
o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a
beleza que transportas como um peso árduo
se
quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado
e vivo.
— Para
consagração da noite erguerei um violino,
beijarei
tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei
minha voz confundida com a tua.
Oh
teoria de instintos, dom de inocência,
taça
para beber junto à perturbada intimidade
em que
me acolhes.
Começa
o tempo na insuportável ternura
com
que te adivinho, o tempo onde
a
vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o
encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua
e cara, o que pressente o coração
engasta
seu contorno de lume ao longe.
Bom
será o tempo, bom será o espírito,
boa
será nossa carne presa e morosa.
—
Começa o tempo onde se une a vida
à
nossa vida breve.
Estás
profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina,
imagem fechada em sua força e pungência.
E o
que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em
torno das violas, a morte que não beijo,
a erva
incendiada que se derrama na íntima noite
— o
que se perde de ti, minha voz o renova
num
estilo de prata viva.
Quando
o fruto empolga um instante a eternidade
inteira,
eu estou no fruto como sol
e
desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz
de sumo e vivo gosto.
— E as
aves morrem para nós, os luminosos cálices
das
nuvens florescem, a resina tinge
a
estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E
estás em mim como a flor na ideia
e o
livro no espaço triste.
Se te
aprendessem minhas mãos, forma do vento
na
cevada pura, de ti viriam cheias
minhas
mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em
minha espuma,
que
frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
— No
entanto és tu que te moverás na matéria
da
minha boca, e serás uma árvore
dormindo
e acordando onde existe o meu sangue.
Beijar
teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no
aro de fogo de uma entrega
tua
carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será
criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu
perpétuo instante.
— Eu
devo rasgar minha face para que a tua face
se
encha de um minuto sobrenatural,
devo
murmurar cada coisa do mundo
até
que sejas o incêndio da minha voz.
As
águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem
da carne aspiram longamente
a
nossa vida. As sombras que rodeiam
o
êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu
bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso
no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada,
o mar, os centauros
do
crepúsculo
—
aspiram longamente a nossa vida.
Por
isso é que estamos morrendo na boca
um do
outro. Por isso é que
nos
desfazemos no arco do verão, no pensamento
da
brisa, no sorriso, no peixe,
no
cubo, no linho,
no
mosto aberto
— no
amor mais terrível do que a vida.
Beijo
o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o
perfume da tua noite.
Murmuro
os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e
branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a
cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao
círculo de meu ardente pensamento.
Onde
está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre
o teu sorriso imenso.
Em
cada espasmo eu morrerei contigo.
E peço
ao vento: traz do espaço a luz inocente
das
urzes, um silêncio, uma palavra;
traz
da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh
amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa
de madeira do planalto,
rios
imaginados,
espadas,
danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas
da noite. Ó meu amor,
em
cada espasmo eu morrerei contigo.
De meu
recente coração a vida inteira sobe,
o povo
renasce,
o
tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor
do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de
crepúsculos e crateras.
Ó
pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta
pela noite equilibrada, imponderável —
em
cada espasmo eu morrerei contigo.
E à
alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre
a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua
entrega. Bichos inclinam-se
para
dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra
o ar. Tua voz canta
o
horto e a água — e eu caminho pelas ruas frias com
o
lento desejo do teu corpo.
Beijarei
em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu
morrerei contigo.